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terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Um mosteiro em meio ao islã
História de um jesuíta romano e de um mosteiro em ruínas que ressurge em terra árabe, tornando-se ponto de encontros amigáveis entre cristãos e muçulmanos. Com um olhar realista e livre mesmo ante as lutas de poder mundano que agitam o Oriente Médio
 Gianni Valente
(30 dias)

(Vista do Mosteiro durante o dia e em seguida ao por do sol)

A trilha pavimentada com lajotas cor-de-rosa que escala a garganta rochosa parece a cicatriz de uma imensa ferida. Uma espécie de sutura estreita que segue em ziguezague para driblar os precipícios e amontoados de rocha mal fixados no corpo áspero de uma das montanhas do Jabal al-Qalamoun, entre Damasco e Aleppo. Lá embaixo, o deserto, de onde sobe o vento morno da primavera, se estende até o Iraque ensandecido pelas bombas e pelo terror. Enquanto isso, lá no alto, a luz rasante do fim da tarde torna ainda mais difícil chegar ao topo acidentado em que se encontra o mosteiro de São Moisés, o Abissínio, em Mar Musa al-Habashi. As torres milenares que se destacam sobre a formação rochosa, onde um antigo bastião romano já vigiava como sentinela a hostil fronteira persa, ainda hoje conservam a impressão que dava a cidadela inacessível aos bandidos, a fortaleza elevada sobre o abismo habitada por quem queria viver ao abrigo das tempestades da história. Mas basta caminhar subindo por cerca de meia hora e chegar ao topo para perceber que se trata de uma coisa completamente diferente. A porta do mosteiro ainda é baixa, de forma que é preciso curvar-se para entrar, mas ao menos hoje está sempre aberta.

(São Moisés monge, o etíope) 
Foi para cá, nos tempos de Muhammad, que veio Moisés, o Abissínio, filho do rei da Etiópia, fugindo de seu destino dinástico pelo desejo de se fazer monge. Tomou como morada uma das grutas que cravejam a montanha, para louvar a Deus por meio de uma vida de oração. Com o passar do tempo, enquanto por todos os lados ao seu redor se estendiam os séculos de civilização islâmica, em cima da montanha de Mar Musa a vida cristã continuou a florescer num mosteiro de rito siríaco, encaixado numa gaiola de cavernas habitadas por monges como se fossem celas de um convento cenobítico. O declínio só começou no século XVIII. O último monge partiu de lá em 1830, quando o mosteiro se tornou propriedade da Igreja siro-católica. Desde então, tudo parecia destinado ao desastre. O vento e a neve, os vândalos e a chuva vinham reduzindo a migalhas a fortaleza monástica, carregando para baixo fragmentos de afrescos milenares e de fontes batismais, além de detritos das rochas do tipo dolomítico. Todos os anos, em 27 de agosto, vigília da festa de São Moisés, o Abissínio, só os cristãos da vizinha Nebek se lembravam de subir à cidadela em ruínas, para repetir orações cheias de nostalgia entre os restos desolados do mosteiro. Até o dia em que passou por esses lados Paolo Dall’Oglio, jesuíta romano, filho imprudente de Santo Inácio. E também, ao menos um pouquinho, de São Francisco.

(Mosteiro de Mar Musa)

Um novo início
Todos os que falam de padre Paolo correm o risco de escorregar para o clichê de um idealista obstinado pelo seu imenso ego. Filho de um dos primeiros líderes democrata-cristãos (“uma vez, voltando de trem de um dos grandes comícios, De Gasperi adormeceu no ombro de meu pai, Cesare, que dirigia os grupos juvenis no final da década de 1940”), quarto de oito irmãos, nasceu numa família tipicamente burguesa no bairro Salario, em Roma. Depois, vieram as épocas da militância na esquerda, como cristão “pelo socialismo”, do voluntarismo do jovem bem de vida que precisava ser praticado nas periferias romanas, do escotismo, do serviço militar no exército alpino (“queriam ocupar o quartel; esperávamos de uma hora para a outra o golpe dos americanos...”). Até o dia do surpreendente propósito de entrar na Companhia de Jesus, em 1974, como resposta transbordante a uma vocação que ele havia percebido em meio aos mil desejos de viver de uma forma grandiosa. Uma aventura que, também por acasos fortuitos – uma viagem da Turquia à Jordânia, o encontro com o islamólogo jesuíta Arij Roest Crollius –, pareceu bem cedo marcada pelo fascínio pelo mundo muçulmano, por essa multidão “que se ajoelha em todos os países num mesmo gesto, e reza sussurrando com a mesma língua suas palavras de submissão ao único Deus”. Já em fevereiro de 1975 o noviço romano conta audaciosamente a Pedro Arrupe seu desejo de “dar a vida pela salvação dos muçulmanos”. O geral jesuíta, medindo-o com um olhar um tanto irônico, responde que “é uma missão difícil, mas, se é a vontade do Senhor, que assim seja”. Oito meses depois, Paolo já está em Beirute para estudar árabe como um desvairado. O holandês Peter-Hans Kolvenbach, que naquela época dirigia a província jesuíta do Oriente Médio, hospeda-o na residência da Companhia, a poucos metros da linha verde que divide as frentes da guerra civil, na torturada capital libanesa. Depois vêm os estudos islâmicos em Damasco e no Instituto Universitário Oriental, em Nápoles, e a opção intuitivamente feliz de se radicar numa Igreja local do Oriente, “daquelas que tinham sobrevivido à profecia do Alcorão, e que por séculos coabitaram com ela”. Escolhe o rito da Igreja siríaca, “apostólica, semítica, popular, uma Igreja pobre, de cristãos que vivem à beira do deserto, que nunca foi imperial”, cuja liturgia, “sem transitar pela língua grega, assumiu o árabe, língua sagrada do islã, conservando hinos e orações na língua siríaca (ou aramaica) falada pelo próprio Jesus”. No verão de 1982, em busca de um lugar isolado em que pudesse se retirar para seus exercícios espirituais, as indicações de um antigo guia da Síria publicado em 1938 o levam às ruínas do mosteiro de Mar Musa, abandonado havia dois séculos. Ele entra na igreja de teto destelhado e sua lanterna sonda os afrescos do século XI, milagrosamente conservados: rostos de santos e santas pintados nas naves da igreja e até sob os arcos, e, na parede de fundo, um Juízo Universal com o Paraíso povoado de profetas, evangelistas, santos e monges, e o Inferno cheio de clérigos e bispos. No início, pensa somente que valeria a pena restaurar aquele lugar, talvez envolvendo nisso algum amigo monge de Roma – os beneditinos, ou talvez os trapistas. Mas depois, bem naqueles dias, passa por ali um grupo de caçadores muçulmanos. Eles ficam surpresos por encontrar alguém naquele lugar. Jantam com ele, lêem juntos o Alcorão, e antes de partir lhe deixam toda a comida que trazem consigo, como se dessem uma esmola a um monge. E, em 27 de agosto, os cristãos de rito siríaco que todos os anos nessa data sobem de Nebek experimentam a mesma surpresa. Rezam dentro da igreja a céu aberto com abuna Paolo, que nessa altura, em seu coração, já decidiu: esse é o lugar bom para se viver uma vida inteira.
Como bom jesuíta, embarca em sua empreitada não programada procurando sem pudor todas as ajudas possíveis: organismos vaticanos, governo sírio, Ministério das Relações Exteriores italiano, Comunidade Européia, agências de voluntariado internacional, escolas arqueológicas de restauração. Encara com seu olhar vulcânico obstáculos de todos os tipos, como a bem compreensível e prudente desconfiança de alguns dos habitantes locais, tanto cristãos quanto muçulmanos. A relação com a Companhia de Jesus também passar por anos de “suspensão”, antes que as coisas se esclareçam. A partir de 1991, Mar Musa volta a ser a sede de uma pequena comunidade monástica, com ramo masculino e feminino, reunida em torno de três “prioridades”: oração (com as liturgias diárias em árabe, segundo o rito siríaco), trabalho manual (azeitonas, cabras, carne e queijo, restauração dos afrescos, trabalhos de cozinha, biblioteca) e hospitalidade, “que no mundo semita, árabe e de origem nômade”, sublinha Paolo, “é a virtude mais alta”. A bem ver, nada de original. Ora et labora. Se não fosse o fato de estarmos bem no coração do islã. E de os hóspedes a que Paolo abre as portas do mosteiro serem sobretudo filhos e filhas da nação islâmica. Os mesmos que todos os dias repetem ao menos cinco vezes, ao grande e misericordioso Alá, a confiança na misericórdia divina, sem a qual ninguém pode agradar a Deus.


(Uma das paredes da capela do Mosteiro afrescada com cenas do Juízo Final)
Fazer-se tudo para todos
Muitos deles sobem até o mosteiro, sobretudo às sextas-feiras, seu dia de festa. Sozinhos, em grupos, com a família e as crianças. Entram na igreja tirando os sapatos, sentam-se no chão sobre tapetes beduínos, às vezes voltados para a parede branca que indica a direção de Meca. Mas fazem também gestos de devoção diante dos rostos da Virgem Maria, de Jesus e de João Batista. Depois, comem debaixo da grande tenda que serve de refeitório, ou entre as lajotas de pedra do lado da montanha por onde se espalham grutas para eremitas aprendizes. Suas visitas, sem nenhuma tensão, são também o reflexo mais comum da trama de encontros e relações com o mundo islâmico que os monges de Deir Mar Musa estabeleceram em mais de quinze anos. Se o grande jesuíta Mateus Ricci assumiu os ritos da tradição de Confúcio em sua missão de testemunhar Cristo no Império Celeste, para padre Paolo também não é escandaloso assimilar práticas e costumes compartilhados pelo ambiente muçulmano que o cerca. Quando seus amigos muçulmanos jejuam por ocasião do Ramadã, ele também se une a sua prática penitencial. “Não é por imitação”, diz, “mas por simpatia em Cristo”. Os jovens cristãos do lugar lhe contaram que muitas vezes jejuaram com os amigos muçulmanos durante o serviço militar ou quando em viagem por motivo de trabalho. Quando alguém o acusa de criar escândalos e confusões, ele responde que não inventou nada. Que por aqui “os povos cristãos árabes guardaram por séculos a percepção de que são uma comunidade que tem o mesmo destino da maioria muçulmana. E de que são testemunhas de Cristo para os muçulmanos, muito mais que diante deles, mais com a vida do que com as palavras”. Uma proximidade cujos indícios se espalharam não apenas na vida cotidiana, mas também nos gestos mais comuns da vida de fé. Assim, nos santuários mais antigos da cristandade síria, como o santuário mariano de Saydnaya ou o de Santa Tecla, em Maalula, as pessoas também entram descalças e rezam ajoelhadas em tapetes, como em qualquer mesquita. Em Deir Mar Musa, as restaurações que salvaram os afrescos do século XI trouxeram à luz numerosas inscrições árabe-cristãs cheias de expressões e termos cordialmente tomados do vocabulário devocional muçulmano, a começar pelas palavras iniciais do Alcorão, “em nome de Deus clemente e misericordioso”. Uma mistura inevitável, uma vez que as Igrejas daqui assumiram como língua litúrgica a mesma do Alcorão, que todo o islã utiliza como língua sagrada. “E que, por acaso”, sublinha Dall’Oglio, “é também a última citada entre as faladas pelos apóstolos por milagre, no dia de Pentecostes”.
Os boatos que dão conta da efusiva simpatia pelo islã praticada em Deir Mar Musa chegaram até o Vaticano. Quando o mosteiro pediu a aprovação de sua regra, os textos e informações sobre a comunidade monástica foram submetidos ao exame atento das Congregações romanas, o que durou de 2002 a 2006. Depois de exames escrupulosos e de alguns retoques nos textos, eles receberam o nihil obstat que abre caminho à aprovação canônica por parte da diocese sírio-católica de Homs, que tem jurisdição sobre o mosteiro. Abuna Paolo e seus companheiros sabem muito bem que certamente não teriam escapado se o juízo tivesse sido emitido pelo pelotão de formadores de opinião que há anos espalha por toda a mídia do Ocidente alarmes a respeito da agressão islâmica à civilização cristã. Eles acabam por descrever os islâmicos como um bilhão de potenciais cortadores de cabeças. Se dependesse desses formadores de opinião, os esquálidos monges de Deir Mar Musa teriam de ser inscritos ex officio na lista de desertores, culpados por realizar comércio com o inimigo.
O fato é que, quando se olha desta altura, de cima do deserto sírio, toda a incandescente questão das relações entre o mundo islâmico e o mundo cristão se mostra sob uma outra luz, e sugere avaliações no mínimo originais. Se dermos ouvidos a abuna Paolo, o mundo islâmico representa às vezes muito mais um providencial e paradoxal aliado, até geopolítico, da aventura cristã no mundo. Os bilhões de muçulmanos que todos os dias, segundo as palavras do Concílio, “dão culto a Deus, sobretudo com a oração, as esmolas e o jejum”, são para o hiperbólico jesuíta “a massa de contenção de qualquer pretensão hegemônica ‘cruzada’, em suas diversas formas, inclusive as ‘laicas’ da modernidade secularizada e globalizada”. Ao mesmo tempo, afirma ele, o terror islamista que ensangüenta o mundo e sufoca também tantos pobres cristãos que carregam o nome de Jesus “não teria explodido sem o imenso pântano de cumplicidade ocidental que preparou o terreno para as plantas venenosas”. A febre de identidade que contagiou tantos líderes cristãos, “essa ânsia de ter de demonstrar sempre a ‘superioridade’ de sua religião, no fundo trai a angústia profunda do mundo cristão, a suspeita de que Ele, Cristo, não esteja realmente vivo, e aí é preciso cerrar os dentes para se ‘convencer’ da verdade do cristianismo e de sua superioridade moral, fazendo-o mediante a vitória cultural e sócio-econômica sobre as outras religiões”.

(Altar da Igreja do Mosteiro Mar Musa; a Virgem ladeada pelos santos Padres)
A paciência de Deus
Em Damasco, um dos três minaretes da imensa mesquita dos Omayyadi é conhecido como o minarete de Jesus. Segundo uma tradição conservada pelos muçulmanos damascenos, sobre essa torre aparecerá Jesus no dia da sua volta, para derrotar o Anticristo, anunciar o fim dos tempos e separar os bons dos ímpios. O Concílio Vaticano II disse que a Igreja louva e vê com estima os muçulmanos que “procuram submeter-se de todo o coração aos decretos de Deus”, e “esperam o dia do juízo, quando Deus retribuirá a todos os homens ressuscitados”.
A atitude “mimética” ou, melhor, incultural de abuna Paolo e de seus companheiros perante a maré islâmica orante que os cerca não é só uma versão atualizada das velhas “camuflagens” de que os jesuítas eram acusados, nem é uma estratégia política de sobrevivência para minorias assediadas. Ele observa que “o islã não é um fenômeno temporário nem efêmero”. A negação que o Alcorão faz da divindade de Cristo “é análoga à recusa dos judeus de acolher o anúncio evangélico”. E, se São Paulo abraçou a recusa dos israelitas na perspectiva do fim dos tempos, quando “todo Israel será salvo” (Rm 11, 26), abuna Paolo, por analogia, projeta também sobre os tempos últimos suas esperanças “de nos unirmos por intercessão da Virgem Maria, diante de Cristo juiz misericordioso e rei da paz, ao coro dos anjos e dos santos, junto dos salvos da nação de Muhammad”. Nesse meio tempo, que é também o tempo da Igreja, a “estadia” cordial dos discípulos do Nazareno no meio do islã, a mesma já vivida por São Francisco, por Charles de Foucauld e, durante séculos, pelas milenares Igrejas minoritárias do Oriente, parece a padre Paolo ainda o único caminho eficaz, capaz de desarmar os espíritos, para “mostrar o amor de Jesus pelos filhos de Ismael”. E é também a maneira de pôr sua esperança unicamente na ação d’Ele, que ainda hoje pode tocar os corações e umedecer os olhos de quem quiser. “Eu mesmo já me teria convertido ao islã há muito tempo”, diz abuna Paolo, “se não tivesse saboreado em minha vida a ternura de Jesus de Nazaré, o Filho do Altíssimo”.

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