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quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

 
 
 


Os primeiros cristãos


Considerados os descendentes diretos dos apóstolos, melquitas celebram o Natal com tradições milenares

Publicado no Jornal O GLOBO

22 de dezembro 2012

Por DANIELA KRESCH

 

MI’ILYA, Israel - “Venham a mim todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu lhes darei descanso”. A passagem do Evangelho de Mateus (11:28) mudou a vida do técnico de enfermagem Osama Layous, de 43 anos, morador do vilarejo árabe cristão de Mi’ilya, na Galileia (Norte de Israel). No dia 13 de maio de 1996, ele internou sua mulher, Rawia, num hospital local para uma cirurgia de emergência. Nervoso, abriu uma Bíblia que encontrou na sala de espera e se deparou com o versículo acima. “Um sinal de Deus”, pensou. Entre preces e promessas, viu Rawia melhorar nos meses seguintes. Nada menos, para ele, do que um milagre.

Sentado entre quadros com ícones de santos, guirlandas, luzes e enfeites natalinos, Osama conta como esses acontecimentos há 16 anos levaram toda sua família a abraçar com força a fé católica tradicional de Mi’ilya, uma aldeia de 3.100 habitantes, todos cristãos — raridade no Estado Judeu, onde os cristãos são apenas 4% da população, e em todo o Oriente Médio, onde o percentual não chega a 2%. Ninguém da família Layous perde as procissões, missas e festividades da cidade, reduto da Igreja Greco-Católica Melquita, o rito católico mais antigo do mundo e a maior comunidade cristã, atualmente, na bíblica Galileia, berço de Jesus.

— Tudo começou aqui, por aqui passaram os apóstolos e os primeiros cristãos. Somos os descendentes diretos deles — diz o devoto Osama.

 Tradições milenares antes da ceia mediterrânea

Às vésperas do Natal na Terra Santa, onde a tradicional Igreja Católica Romana convive com 14 dos 22 ritos católicos orientais existentes no mundo, os melquitas de Mi’ilya saem às ruas para mostrar suas tradições milenares, abrindo as portas de suas casas a judeus, muçulmanos e adeptos de outras crenças. Além de missas, procissões, apresentações de corais sacros e quermesses, no dia 24 de dezembro dezenas de moradores da cidade se fantasiam de Papai Noel, adaptando uma tradição ocidental, e distribuem presentes às crianças antes da ceia natalina. No cardápio, quitutes mediterrâneos como abobrinha recheada com arroz e canela, tabule e charutos de folha de uva.

— Nossa comida vem da época de Cristo. São alimentos servidos a mulheres que acabaram de dar à luz, numa homenagem à Virgem Maria — explica o padre Nadim Shakur, um dos principais líderes comunitários.

Os moradores de Mi’ilya têm realmente muito para celebrar. A cidade é uma das mais ricas entre a minoria árabe de Israel, e um em cada quatro adultos tem diploma universitário. Mas a maior vitória é a comunidade ter sobrevivido a dois milênios de perseguições, rixas, conquistas, assimilação cultural e ao moderno conflito entre israelenses e palestinos.

A atual cidade recebeu os primeiros melquitas oriundos da Síria e do Líbano por volta de 1760 e eles mantiveram as tradições a duras penas. Em 1922, Mi’ilya só contava com 442 habitantes, nem todos cristãos. Hoje, são mais de três mil, todos católicos e dedicados à manutenção da comunidade.

 Igreja pequena para o número de fiéis

O lento mas constante aumento populacional faz com que a única Igreja de Mi’ilya, construída em 1846, com arquitetura bizantina e restaurada em 2006, não possa abrigar todos os fiéis. Dentro dela, só cabem 350 pessoas e muitos ficam de fora em dias importantes, como o Natal. Por causa disso, a prefeitura da cidade está em campanha para arrecadar US$ 6 milhões para construir uma nova igreja, maior e mais moderna.

— No ano que vem, já marcamos viagem para vários países para arrecadar contribuições. Vamos aos Estados Unidos, ao Canadá e também ao Brasil — avisa Eiliya Arraf, líder do conselho municipal, uma espécie de prefeito.

Mi’ilya, que fica a apenas 10km da fronteira de Israel com o Líbano, foi habitada desde 2000 a.C. por israelitas, babilônios, gregos, romanos, bizantinos, cruzados, mamelucos e otomanos, entre outros. Por volta de 1000 a.C., chamava-se Aloth, cidade-natal de um dos principais assessores do Rei Salomão. Foi destruída e reconstruída diversas vezes, até se tornar ponto de passagem obrigatório de cristãos que peregrinavam até Jerusalém, no período das Cruzadas. Foi na cidade, em 1160, que o Rei Balduíno III construiu uma ampla fortaleza chamada de “Castelo do Rei”, que acabou caindo nas mãos do rei árabe Saladino em 1187.

— Estamos numa terra atraente, a Terra Santa, todos querem passar por aqui — conta o historiador Shukri Arraf, especialista em Oriente Médio da Universidade Hebraica de Jerusalém e natural de Mi’ilya.

— A Igreja Melquita tem origem na Antioquia, atual Antaquia, na Turquia, uma cidade que desempenhou um importante papel na História do Cristianismo. Foi lá que a palavra “cristão” foi usada pela primeira vez para designar seguidores de Jesus. E também foi lá que São Pedro, o primeiro Papa, fez seus primeiros sermões em busca de seguidores — explica o historiador.

Hoje, os melquitas são uma igreja sui juris (autônoma) com hierarquia, sacerdotes e bispos próprios, mesmo estando em comunhão com o Vaticano. Seu líder responde pela longa designação de “Patriarca de Antioquia e Todo o Oriente, Jerusalém e Alexandria, Décimo-Terceiro Apóstolo e Sucessor de Pedro”. Na Terra Santa, estão dividos em três dioceses: a de Jerusalém, com 3 mil fiéis espalhados pela Cidade Sagrada e arredores (Belém e Ramallah, entre outras); a de São João de Acre, com 73 mil fiéis na Galileia e arredores (incluindo Mi’ilya, Acre, Haifa e Nazaré); e a de Petra, com 32 mil fiéis, com jurisdição sobre a Jordânia.

Pouco conhecidos pelos católicos ocidentais, os ritos melquitas incorporam elementos gregos, latinos e orientais. A missa, chamada Divina Liturgia, é em árabe, grego e hebraico com cânticos à capela. Mas a maior diferença em relação ao catolicismo romano é o fato de que os padres melquitas podem se casar antes de serem ordenados. Uma vez padre não pode casar, ainda que fique viuvo.

 Fiéis ao cristianismo no mundo árabe

A palavra melquita vem de “melek”, ou “rei” em árabe. Era o apelido jocoso dos cristãos que, na época do Concílio da Calcedônia, no ano 451, apoiaram a visão defendida pelo Imperador Marciano de Bizâncio de que Jesus seria ao mesmo tempo divino e humano. Com a conquista islâmica do Mediterrâneo, no século VII, os melquitas foram cruciais para a manutenção do cristianismo no mundo árabe, mesmo tendo incorporado elementos da cultura dos conquistadores em seus ritos. Em 1724, o Vaticano reconheceu pela primeira vez um patriarca melquita e abraçou a facção.

No interior das igrejas melquitas não há estátuas, mas ícones de santos, de profetas, da Virgem Maria e de Cristo pendurados nas paredes. Na igreja de Mi’ilya, chamam a atenção os retratos dourados com molduras de madeira de ícones ou passagens bíblicas enfileirados na entrada do Sancta Sanctorum, o local mais sagrado, onde fica o Altar sobre o qual repousa o Evangeliário e o Ortoforion (sacrário).

Atualmente, eles contam com 1,3 milhão de fiéis em 28 dioceses pelo mundo. As principais comunidades se encontram na Síria, no Líbano, no Egito, na Galileia (Israel) e na Cisjordânia (territórios palestinos). Mas há comunidades nos Estados Unidos, no Canadá, na Argentina, na Austrália, no México e também no Brasil. Em São Paulo, existe a eparquia (diocese, no rito oriental) da Nossa Senhora do Paraíso, fundada por imigrantes sírios e libaneses em 1941. Outras paróquias também funcionam em cidades como Rio, Fortaleza e Juiz de Fora. Mas há pouca ligação com os melquitas da Galileia.

— Espero conhecer melhor nossos irmãos brasileiros para fortalecer ainda mais nossos costumes milenares — deseja o prefeito Eiliya Arraf.



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