Santos Ícones
O PRIMEIRO DOMINGO DA GRANDE
QUARESMA É O DOMINGO DA ORTODOXIA. Ele foi estabelecido como um dia memorial
especial pelo Concilio de Constantinopla em 843. Ele comemora antes de tudo a
vitória da Igreja sobre a heresia dos Iconoclastas: o uso e veneração dos
Santos Ícones foi restaurada. Neste dia nós continuamos a cantar o tropário da
Santa Imagem de Cristo: "Nós reverenciamos Vossa sagrada Imagem, ó
Cristo..."
Á primeira vista, pode parecer ser
uma ocasião inadequada para comemorar a glória da Igreja e todos os heróis e
mártires da Fé da Igreja. Não seria mais razoável fazer isto nos dias dedicados
à memória dos grandes Concílios Ecumênicos ou dos Santos Padres da Igreja? A
veneração do Ícone não é mais uma peça de um ritual e cerimonial externo? Um
Ícone pintado não é justamente mais uma decoração, muito bonita de fato, e de
diversas maneiras instrutiva, mas dificilmente um artigo de Fé? Esta é a
opinião corrente, infelizmente largamente espalhada mesmo entre os próprios Católicos
e Ortodoxos. E é a responsável por um pesaroso decaimento da nossa arte
religiosa. Nós usualmente confundimos Ícones com "pinturas
religiosas", e assim não encontramos dificuldade em usar as mais
inadequadas pinturas como Ícones, mesmo nas nossas igrejas. Com excessiva
freqüência nós simplesmente perdemos o significado religioso dos Santos Ícones.
Nós esquecemos do verdadeiro e definitivo propósito dos Ícones.
Olhemos o testemunho de São João
Damasceno — um dos primeiros e maiores defensores dos Santos Ícones na época da
luta — o grande teólogo e poeta devocional da nossa Igreja. Em um de seus
sermões em defesa dos Ícones ele diz: "Eu tenho visto a imagem humana de
Deus e minha alma está salva". É uma afirmação forte e mobilizadora. Deus
é invisível, Ele vive na luz inaproximável. Como pode um homem frágil ver ou
contemplar Ele? Porém, Deus Se manifestou na carne. O Filho de Deus, Que está
no seio do Pai, "desceu do céu" e "Se fez homem". Ele
habitou entre os homens. Este foi o grande movimento do Amor Divino. O Pai
Celestial foi movido pela miséria do homem e enviou Seu Filho porque Ele amava
o mundo. "Deus nunca foi visto por alguém. O Filho Unigênito, Que está no
seio do Pai, Este o fez conhecer." (Jo. 1: 18). O Ícone de Cristo, Deus
Encarnado, é um testemunho contínuo da Igreja para aquele mistério da Santa
Encarnação, que é a base e substância de nossa fé e esperança. Cristo Jesus,
nosso abençoado Senhor, é Deus Encarnado. Isto significa que desde a Encarnação
Deus é visível. Pode-se ter agora uma verdadeira imagem de Deus. A Encarnação é
uma identificação íntima e pessoal de Deus com o homem, com as necessidades e
misérias do homem. O Filho de Deus "Se fez homem", como afirma o
Credo, "e por nós homens e para nossa salvação". Ele tomou sobre Si
os pecados do mundo, e morreu por nós pecadores na árvore da Cruz, e assim Ele
fez da Cruz a árvore da vida para os fiéis. Ele Se tornou o novo e Último Adão.
A Cabeça da nova e redimida humanidade. A Encarnação significa uma intervenção
pessoal de Deus na vida do homem, uma intervenção do Amor e Misericórdia.
O
Santo Ícone de Cristo é um símbolo disto, mas muito mais do que um mero símbolo
ou sinal. É também um eficiente sinal e recordação da presença em habitação de
Cristo na Igreja, que é Seu Corpo. Mesmo em uma pintura comum há sempre algo da
pessoa representada. Uma pintura não só nos lembra da pessoa, mas de alguma
forma conduz a alguma coisa dela, isto é, "representa" a pessoa, ou
seja, "torna ela presente de novo". Isto é ainda mais verdade com a
sagrada Imagem de Cristo. Como os professores da Igreja nos ensinaram —
especialmente São Teodoro o Estudita, outro grande confessor e defensor dos
Santos Ícones — um Ícone, em certo sentido, pertence á própria personalidade de
Cristo. O Senhor está lá, nas Suas "Santas Imagens".
Por isso, nem todo mundo tem
permissão para fazer ou pintar um Ícone, se se tratar de verdadeiros Ícones. O
pintor de Ícones deve ser um membro fiel da Igreja, e deve se preparar para sua
tarefa sagrada com jejum e oração. Não se trata somente de uma questão de arte,
ou de habilidade artística ou técnica. É um tipo de testemunho, uma profissão
de fé. Pela mesma razão, a arte em si deve ser subordinada de todo o coração à
regra da fé. Há limites para a imaginação artística. Existem certos padrões
estabelecidos a serem seguidos. Em todo caso, o Ícone de Cristo deve ser
executado de maneira a conduzir à verdadeira concepção de Sua pessoa, isto é,
testemunhar a Sua Divindade, ainda que Encarnada. Todas estas regras foram
mantidas por séculos na Igreja, e então elas foram esquecidas. Até mesmo
descrentes foram autorizados a pintar ícones de Cristo nas igrejas, e assim
certos ‘ícones’ modernos não são mais do que pinturas, nos mostrando somente um
homem. Estas pinturas falham em ser "Ícones" em qualquer sentido
próprio e verdadeiro, e cessam de ser testemunhas da Encarnação. Em tais casos,
nós simplesmente "decoramos" nossas igrejas.
O uso dos Santos Ícones sempre foi
uma das características mais distintivas da Igreja (Ortodoxa e Católica)
Oriental. O Ocidente Cristão, mesmo antes do Cisma, tinha pouco entendimento
desta substância dogmática e devocional da pintura de Ícones. No Ocidente ela
significava simplesmente decoração. E foi sob influência ocidental que a
pintura de Ícones também se deteriorou no Oriente nos tempos modernos. O
decaimento da pintura de Ícones foi um sintoma do enfraquecimento da fé. A arte
dos Santos Ícones não é uma matéria neutra. Ele pertence à Fé.
Não deve haver risco, nem
"improvisação" na pintura de nossas igrejas. Cristo nunca está
sozinho, afirma São João Damasceno. Ele está sempre com Seus santos, que são
Seus amigos para sempre. Cristo é a Cabeça, e os verdadeiros fiéis são o Corpo.
Nas igrejas antigas o estado completo da Igreja Triunfante estava representado
pictoricamente nas paredes. De novo, isto não era simplesmente uma decoração,
nem era uma simplesmente uma história contada em linhas e cores para os
ignorantes e iletrados. Era mais uma visão da realidade invisível da Igreja. A
companhia toda do Céu estava representada porque ela estava presente ali,
apesar de invisivelmente.
Nós sempre oramos na Divina Liturgia, durante a
Pequena Entrada, "que os Santos Anjos entrem conosco para servirem
conosco...". E nossa oração é, sem dúvida, atendida. Nós não vemos os
Anjos, na verdade. Nossa visão é fraca. Mas é relatado que São Serafim
costumava vê-los, pois eles estavam lá de fato. Os eleitos do Senhor os vêem e
a Igreja Triunfante. Ícones são sinais desta presença. "Quando nós estamos
no templo de Tua glória, nós os vemos nos Céus".
Assim, é bastante natural que no
Domingo da Ortodoxia nós devamos celebrar não somente a restauração da
veneração dos Ícones, mas comemorar também o glorioso corpo de testemunhas e
fiéis que professaram sua fé, mesmo ao custo de sua segurança, prosperidade e a
própria vida mundana. É o grande dia da Igreja.
De fato, nesse dia nós
celebramos a Igreja do Verbo Encarnado: nós celebramos o Amor do Pai que redime,
o Amor Crucificado do Filho, e o Companheirismo do Espírito Santo, tornados
visíveis na companhia toda dos fiéis, que já entraram no Repouso Celeste, na
alegria Permanente do Senhor e Mestre deles. Santos Ícones são nossas
testemunhas do Reino que há de vir, e já presente.
Redator: Bispo Alexandre Mileant Do Capítulo
VI, "Dimensões da Redenção," da
Collected
Works of Georges Florovsky, Vol. III:
Creation
and Redemption (Nordland Publishing Company):
Belmont, Mass., 1976), pp. 209-212.
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